Poemas de Ângelo Monteiro

Ângelo Monteiro. Créditos: Cristiane Maria da Hora

Ângelo Monteiro. Foto: Cristiane Maria da Hora

Ângelo Monteiro, nascido em Penedo, Alagoas, poeta, ensaísta e professor universitário, é autor dos seguintes livros de poesia: Proclamação do Verde, Didática da Esfinge, Armorial de um Caçador de Nuvens, O Inquisidor, O Ignorado, O Rapto das Noites ou o Sol como Medida, O Exílio de Babel, As Armadilhas da Luz, Recitação da Espera, Os Olhos da Vigília e Todas as coisas têm língua. Na área do ensaio conta com os seguintes títulos: Tratado da Lavação da Burra ou Introdução à Transcendência Brasileira, O Conhecimento do poético em Jorge de Lima, Escolha e Sobrevivência, Arte ou desastre e Outras vozes.

ODE SACRIFICAL

I

Glória ao Senhor da Espera,
Àquele que perturba para depois violar.
Glória ao Perturbador e ao Violador das nossas almas,
Glória ao Divino Tentador, Serpente levantada sobre o deserto
Para nos perder e para nos salvar.
Na ausência de montanhas ou grutas reveladoras,
No entrecruzar das vozes da terra,
Ouvimos ainda sua voz banhando a nossa solidão:
Pois os homens se deixam de novo tentar pelas palavras dos seus anjos.

Glória ao Senhor da Espera
Que não é apenas verdadeiro,
Mas belo e aprazível:
Pois em sua beleza repousa a verdade.
As menores coisas desejam ser conhecidas e reveladas
Por sua Espada, Luz, Serpente Clarividente,
Pois todas as coisas são concubinas de Deus.
Mas, por mais que se entreguem
À sua Espada, Luz, Serpente Clarividente,
As coisas terão sempre o que entregar.
Por mais que elas sejam penetradas,
As coisas mantêm sua virgindade,
Inesgotáveis que são no seu mistério:
Pois todas as coisas são vestais de Deus.
Todas as coisas se entregam
Numa grande oferenda solidária,
Às mãos sacrificadoras que delas exigem
Seu sangue e seu mistério.
As coisas também se sacrificam umas às outras:
Pois elas são sacerdotisas de Deus.
Ó Senhor da Espera,
Violador das coisas,
Amante violento das vossas servas, as coisas,
Violai-as de vez.
As coisas estão em agonia
Para ofertar-se de vez e se pacificarem
E pacificarem a fúria da vossa Vontade.
E os poetas e mágicos, vossos sacerdotes e reis,
Querem oficiar junto a Vós, neste grande sacrifício
De todas as coisas para as vossas mãos.

II

Malditos os que se contentam com pouco,
Pois são indignos do muito.
Malditos os que se julgam realizados,
Pois estes cuspiram sobre o Espelho em movimento.

Malditos os que puseram chumbo nas próprias asas,
Pois não poderão jamais se levantar
Das planuras do seu destino
Para os esplendores do Paraíso.
Malditos os que sustentam os pés na terra,
Pois não poderão ouvir as vozes do Céu.
Malditos sejam os maculadores da guerra,
Pois não têm a menor paixão pelo próprio combate:
Que sejam eliminados com palavras sagradas.
Estes jamais serão arrebatados
Dos vales da sua impureza,
Pois não são inimigos nem soldados,
Não têm a nobreza das feras
Que atacam por necessidade do seu amor ou da sua fome,
Os cordeiros que se imolam sob a grande Vontade.
Podres como escadas partidas
Sobre um pântano,
Eles nem sequer poderão ser destruídos:
Pois deles não haverá memória alguma.

III

Sob os meus pés
A terra é jovem e mansa; meus pés é que são ásperos,
Bem mais ásperos que a fragilidade de minhas mãos
Modeladas pelo vento.
No meu caminho
Há criaturas que são sombras incidindo
Sobre a minha missão,
E pondo o terror na minh’alma, aspirante de Deus.
Outros podem louvar o seu destino,
Eu não: não tenho mais tempo para isso.
Pois não vivo no tempo como numa redoma
Os peixes: trago espelhos implacáveis
Refletindo a face inquieta das coisas,
E o seu tatear sem rumo para o nada.
Por isso nada direi
Que não seja válido para mim mesmo,
Que nasci com a obrigação, aliás única,
De decifrar-me a cada instante.

IV

Glória às lâmpadas infantes
Brilhando junto aos túmulos da terra:
Ainda será grande coisa iluminá-los,
Mesmo que seus fantasmas não despertem
Nem dancem sobre as lousas
Sepultas pela sombra.
Glória às lâmpadas infantes
Pendidas sobre a terra. Expectantes
Anjos e virgens do Senhor. Amém.

V

O Senhor não tomou nenhuma de suas servas como Esposa

A não ser sua Musa:

As outras fazem parte do seu serralho sagrado.

O Senhor não tomou nenhuma de suas servas como Esposa,

A não ser sua Musa:

As suas coxas são as colunas do mundo,

E em seus seios se abrigam os mágicos da terra.

E principalmente os seus santos, artistas e sábios.

VI

Híbridos ventos a perlustrar seus olhos

Dourados da vertigem primeira:

A virgem vê o marfim do seu corpo derreter-se,

Antes mesmo de ser sacrificada.

Que restou das esmeraldas dos seus olhos

Depois que híbridos ventos a abateram?

Com certeza por ela os deuses bailam

E o seu corpo renasce além dos montes.

VII

Não consigo penetrar nos teus átrios.

Ficarei no teu adro.

As velas acesas poderão me perturbar.

A mim que percebo o sussurrar dos teus anjos

Escondidos entre as velas do teu altar.

VIII

Deste nova jornada em tempo ágil,

A mim que me debruço sobre o tempo

Pra sondar teus abismos, teus sinais,

Tua branca linguagem tateando

Meu corpo, e as esfinges que puseste

—  hóstias acesas — sobre a minha carne

Ensinando a perder-me e a reencontrar-me

Com as lâmpadas dispersas do destino.

Anoto o tempo em rotos calendários:

Os dias se puindo, e eu menos jovem

Porém mais vulnerável às altas vozes

Que me gritam a olhar-me fixamente.

As altas vozes tuas, Pai em ouro,

Fundindo em ti meu ser agora e sempre.

A VISÃO DE BERNADETE

A Esman Dias

I

Pequena Bernadete
Asmática de Deus.
De alma além do fôlego,
que o fôlego é pequeno
para conter sua alma
sedenta e pressurosa.
Que o fôlego é pequeno
para a alma que é tanta.
Que o fôlego é pequeno
para conter seu Deus.

II

Cheiro de hóstia nos ares
brancos de Massabielle:
traspassada de vozes
uma menina reza.
As colegas de há pouco,
e a mata em torno, cessam.
Desarmada na gruta
a carne lhe estremece
frágil e confundida
sob os punhais celestes.

Uma visão não dura
mais que o tempo preciso:
crescendo num sorriso
bem maior do que a carne,
na boca a debater-se
a alma leve de pássaro,
quando a Virgem lhe desce
sobre o corpo minguado,
traspassado de vozes,
claro e desamparado.

III

Por que se esconde essa Virgem
do mundo e de sua cara,
e apenas a uma menina
se revela visão clara?
Brancos caminhos a levam
além da gruta e da terra,
no bojo de ocultas asas
oculto vento celeste:
mas a menina não sabe
mais nada senão que reza.

Ó Virgem de torta escolha,
tão torta como as do Filho,
por que os mais altos prelados
do mundo não vêem teu brilho?
Não vêem teu manto estrelado,
e as palmas das mãos descidas
sobre a gruta num clarão
que deixa a luz confundida?
E só mesmo à Bernadete
te fizeste aparecida?

Será preciso a alma ter
dela as vertigens e as ânsias
todas do mundo, e perder
todo o senso da distância,
para que possam os joelhos
ir além do próprio ardor,
e a mão alcance essa prece
que só Bernadete achou:
de sob o peso do cálice
de sua inocente dor?

AO SENHOR DE TODA ESPERA

Quem já não mais interroga
às raízes do silêncio:
o seu amor busca apenas
ao Senhor de toda espera.

Ele volve a sua Face
verde, virgem e sempre móvel:
tão bela que me comove
e de luz me dilacera.

Dessa luz que é o nosso dentro
projetado para fora:
como um deus que libertamos
porque dentro nos devora.

Todo o amor que projetamos
para além de qualquer terra:
temendo que a vida manche
o peso do seu mistério.

Amoroso amor sem rumo:
tão belo que desespera,
tão grande que só termina
no Senhor de toda espera.

EXPECTAÇÃO Nº.6

Para Kadidja

Dá que eu seja pobre de tua Pobreza,
dá que eu seja casto de tua Castidade,
dá que eu seja obediente de tua Obediência,
para que eu recite, surata por surata,
a mensagem de Gabriel à tua Serva.
Sou teu recitador
que não quer das palavras só a sua melodia,
mas seu fogo.
Que não quer ser só tocado por tua Presença,
mas incendiado.
E como afinal me fizeste para o Incêndio
faz, Senhor, que eu não seja incendiado sozinho.
Porque não desejo deter meu êxtase
mas: cada vez mais
juntar o meu sangue com o sangue da tua Serva.
O anjo que me mandaste quase me estrangulou,
e como o bem pode assumir, às vezes,
as aparências do mal,
eu não sabia mais se era anjo ou se demônio.
Mas assim que tua Serva ficou nua
o anjo pacificou-se, sem a tocar.
E intocada a deixou em minhas mãos
para que a sua virgindade, sempre eterna,
me salvasse.
E não fora tua Serva, eu não saberia jamais
se de fato me terias enviado o teu Anjo.
Permite, então, Senhor, que tua Serva
me ensine o caminho da verdadeira nudez.
Permite que a nudez do seu corpo
com palavras do teu Reino meu coração desperte.
Pois através do seu corpo que se despe
poderei entender a Tua Voz quando fala.
Pois corpo e alma nela se fundiram
para salvar teu servo das garras do Demônio.
E só através da nudez sagrada do seu corpo
— intocado pelos próprios anjos —
eu poderei espalhar, como um sol sobre Meca,
a nudez mais sagrada do teu Nome.

SERMÃO DA ESPERA

Sede violentos, se for santa a vossa guerra, mas sede, sobretudo, pacíficos e mansos, pois não pode haver maior violência do que esta. Pois a verdadeira paz representa um combate contra os vossos demônios e uma luta leal com Deus e os seus anjos para sucumbirdes, finalmente, sob o Seu Poder e o da falange angélica dos seus defensores. Deus é o grande Touro, e seja a vossa violência a de toureadores de Deus: ela poderá tocar o seu Divino Coração, enternecido por vossa valentia em Seu combate, ainda que sejais sempre derrotados numa luta com ele, para que a vossa glória se identifique com a sua Glória.

Sede arrogantes para com os arrogantes, para que não estragueis a vossa humildade, submetendo-a ao ridículo do mundo, mas sede, sobretudo, humildes, pois não há fórmula mais poderosa de aniquilamento perante esse mesmo mundo.

Sede cruéis se tiverdes de ser mesquinhos até mesmo sob as aparências do bem. Mas sede, além de tudo, generosos: não há maior sinal do poderio de um caráter.

Sede odiosos toda vez que o amor vos parecer antes uma debilidade que uma grandeza, mas, antes de tudo, amai, porque todo amor, por menor que seja, é mais poderoso que o ódio.

Diante dos profanos sede hipócritas, ainda que não sejais nunca profanos, escondendo em tudo o vosso eu quando os profanos todos trazem suas portas escancaradas, até mesmo aquelas que deveriam ser menos visíveis … Mas sede, sobretudo, francos, quando pressentirdes que há um puro diante de vós.

Sede vis, se não puderdes ser santos, a terdes de fazer até o Bem por mesquinhez. Mas sede, sobretudo, bons, pois não pode haver maior maldade para os maus. E podeis, até mesmo, ser bondosos, se estiverdes, realmente, em procura do Verdadeiro Bem.

Em tudo usai a medida de vossa violência, se não quiserdes resistir à Grande Voz.

Sede impacientes, se a vossa paciência não puder fazer nada para atingir o vosso grande Fim. Mas sede, sobretudo, pacientes, utilizando na vossa paciência o carinho e o cuidado com que dois corpos se comungam, quando enlaçados no Divino Jogo, para atingir o mesmo êxtase.

Sede desesperados, se a vossa espera não refletir mais do que um cansaço, se ela for sem brilho e sem paixão, mas sede, sobretudo, esperançosos, ainda que esta esperança vos custe a vida. Sede, no entanto, além de esperançosos — expectantes, em permanente tensão de espera, ainda quando nada haja que esperar, mesmo depois de esgotadas todas as tentativas de espera, sendo preciso unirdes ao mesmo tempo a esperança e o desespero, numa única síntese expectante. Pois Deus, é, ao mesmo tempo, o Pai de toda a expectação, o Senhor da Espera, o Fogo Violentador e Purificador de toda a esperança.  Amém.